Há 31 anos atrás, na novela "Corpo a Corpo" (1984), de Gilberto Braga, havia um romance inter-racial entre os personagens Claudio e Sonia, vividos respectivamente por Marcos Paulo e Zezé Motta. Na época, insinuaram que Marcos Paulo deveria ganhar muito bem para ter que beijar uma negra na boca. O casal sofreu uma grande rejeição pela parcela mais conservadora do público, mas Gilberto Braga conduziu, valentemente, a trama até o fim. Apesar do racismo ainda estar longe de ser erradicado em nosso país, a rejeição a essa trama já nos soa extremamente infeliz, agressiva e absurda nos dias de hoje.
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31 anos depois, Fernanda Montenegro e Nathalia Timberg dão vida a um casal homossexual em "Babilônia", do mesmo Gilberto Braga, agora em parceria com Ricardo Linhares e João Ximenes Braga. E mais uma vez, a ala conservadora da sociedade já se manifestou contrária à abordagem da referida temática depois do beijo das duas já no primeiro capítulo da novela. Não faltaram insinuações de que as atrizes deveriam estar sendo muito bem pagas para serem submetidas a um papel como esse.
A cena do beijo em questão foi de uma delicadeza e sensibilidade ímpares. Ao contrário de cenas de outras novelas, foi ao ar sem alarde, sem burburinho da imprensa, de maneira natural, pegando o espectador de surpresa. Nada mais pertinente que duas companheiras que se amam e são casadas há décadas, manifestem seu afeto com um beijo. Simples assim? Nem um pouco. Para chegar a esse naturalismo, muitos outros casais gays enfrentaram o julgamento e a resistência de uma sociedade que ainda amadurece a duras penas.
O assunto não é novo. Em 1974, duas relações homossexuais, uma masculina e uma feminina já eram insinuadas na novela “O rebu”, de Braulio Pedroso: Conrad Mahler e Cauê (Ziembiensky e Buza Ferraz) e Glorinha e Roberta (Isabel Ribeiro e Regina Viana). Em “Brilhante” (1981), de Gilberto Braga, a homossexualidade do personagem Inácio (Denis Carvalho), chegou a ser insinuada, mas logo foi apagada da trama, devido à forte censura vigente na época. Anos depois, em “Vale Tudo” (1988), o mesmo Gilberto Braga emplaca o casal Laís e Cecília (Cristina Prochaska e Lala Deheinzelin). Mesmo tendo uma união estável, Laís teve que lutar contra Marco Aurélio (Reginaldo Faria), para receber a herança deixada para ela por Cecília após sua morte. Mas o subtexto ainda prevalecia sobre o texto.
Na novela “Mico Preto”, de 1990, um casal gay vivido por Miguel Falabella e Marcelo Picchi já tinha dado o que falar. Mas os primeiros a ter grande repercussão popular em uma novela foram Sandro e Jefferson (André Gonçalves e Lui Mendes) em “A próxima vítima” (1995), de Silvio de Abreu. Apesar de o ator André Gonçalves ter sofrido alguma hostilidade nas ruas, o casal foi bem aceito e a relação dos dois foi abordada abertamente na novela. A maior ousadia foi mostrar o quarto deles com a cama de casal, sob os olhares cúmplices das mães. Sorte igual não tiveram Leila e Rafaela (Silvia Pfeiffer e Christiane Torloni) em “Torre de Babel” (1998). O casal foi rejeitado pelo público e as duas acabaram morrendo na explosão do shopping, que matou vários personagens da novela.
Depois disso, outros casais ganharam a simpatia e a torcida do público, como Clara e Rafaela (Aline Moraes e Paula Picarelli) em “Mulheres Apaixonadas” (2003), de Manoel Carlos, que até chegaram a trocar um beijo no último capítulo, mas dentro do contexto de um espetáculo teatral. Em “Senhora do Destino” (2004), de Aguinaldo Silva, Eleonora e Jenifer (Milla Christie e Bárbara Borges) chegaram até a adotar uma criança, mas o tão esperado beijo acabou não acontecendo.
Em “América” (2005), de Gloria Perez, o beijo entre Junior e Zeca (Bruno Gagliasso e Erom Cordeiro) chegou até a ser gravado e ganhou uma efusiva torcida, mas acabou não indo ao ar no último capítulo. Desde então, criou-se uma enorme expectativa sobre o tão esperado beijo gay em uma novela, até que em 2011, na novela “Amor e Revolução”, de Tiago Santiago, as personagens Marina e Marcela (Luciana Vendramini e Gisele Tigre) trocaram um longo e apaixonado beijo. Infelizmente, a novela do SBT teve pouca repercussão e pouca gente testemunhou o momento histórico. A grande catarse mesmo veio em fevereiro de 2014, na novela “Amor à vida”, de Walcyr Carrasco, com o beijo entre Felix e Nico (Mateus Solano e Tiago Fragoso). Enfim, nos libertamos desse apelo e, politicamente, o beijo representou um avanço gigante em nossa teledramaturgia. Nessa linha evolutiva, teve beijo com direito a casamento na novela “Em Família” (2014), de Manoel Carlos. As personagens em questão eram Clara e Marina, vividas por Giovanna Antonelli e Tainá Muller.
Enfim, chegamos no tempo presente e, ao que parece, os beijos não serão economizados nas cenas das personagens de “Babilônia”. Doa a quem doer, já passou da hora de um beijo gay deixar de ser beijo gay para ser apenas um beijo, como qualquer outro. Idiossincrasias à parte, a telenovela é o espelho da sociedade e como tal, deve retratar a sociedade como um todo. Queiram ou não os moralistas, os gays existem como cidadãos, pagam os mesmos impostos e não estão mais dispostos a ficarem à margem da sociedade. E nossa teledramaturgia vem, cada vez mais, entendendo isso.
Voltando a questão do racismo, depois do romance inter-racial daquele longínquo 1984, outros casais inter-raciais surgiram e conquistaram a simpatia do público e atrizes negras passaram a protagonizar novelas, como Taís Araújo em “Xica da Silva” (1996) e “Da cor do pecado”(2004).
Enfim, a exemplo da questão do negro que, embora tenha um longo caminho a percorrer, já conquistou inegáveis avanços, a torcida é que, para que os comentários infelizes e discriminatórios sobre o amor gay entre duas senhoras passem a ser considerados tão absurdos como o comentário feito há 30 anos atrás sobre o amor inter-racial de “Corpo a Corpo”. Apesar de algumas reações retrogradas à trama de “Babilônia”, também surgiram muitos comentários favoráveis à abordagem da trama. Ainda que parte da sociedade tenha uma incrível dificuldade em aceitar as diferenças e mesmo correndo o risco de ser chamado de otimista incurável, noto uma certa evolução quando o público revê seus conceitos e, aos poucos, vai abrindo espaço para o novo. A passos lentos sim, mas de alguma forma, estamos evoluindo. “Babilônia” representa um avanço gigante, ao deslocar o beijo gay do lugar do folclore, do espetáculo, do mero evento, para torná-lo natural e legítimo.
E antes que eu me esqueça, obrigado, Gilberto Braga, obrigado valentes autores, por continuarem rompendo paradigmas. Vamos em frente!
Fotos: Divulgação Rede Globo / Reprodução
Por: Vitor de Oliveira - CLIQUE AQUI e leia mais artigos de Vitor de Oliveira
Vitor é Roteirista, escritor, professor e dramaturgo. Criador do blog “Eu prefiro melão”, um dos pioneiros a publicar textos de conteúdo próprio voltado para o universo da teledramaturgia, que deu origem ao seu primeiro livro “Eu prefiro melão – melhores momentos de um blog televisivo”. Colaborador da nova versão de “O astro” (2011), novela de Janete Clair, adaptada por Alcides Nogueira e Geraldo Carneiro, premiada com o “Emmy Internacional”. Atualmente, é um dos roteiristas de “Lady Marizete”, novela das 19 horas da Rede Globo, prevista para 2015. No cinema, foi roteirista dos curtas “Corra, Biba, Corra”, “Metade da Laranja”, “12 horas" e "A Maldição da Rosa". Autor de três peças de teatro: “O que terá acontecido a Nayara Glória?”, “Mãe” e do infantil “A bola mágica”.